Conflito de interesse em pesquisa clínica
Um conflito de interesses é normalmente definido como “um conjunto de circunstâncias que criam um risco de que o julgamento profissional ou ações relativas a um interesse primário sejam indevidamente influenciadas por um interesse secundário.
Neste editoral do Intensive Care Medicine, foi abordado o tema de conflito de interesse em pesquisa clínica.
Neste estudo, os autores demonstraram como é realizado o financiamento dos trials, em que basicamente eles “pagam” os pesquisadores (sendo alguns fantasmas), e “colhem” os frutos no mercado de ações. Para aqueles que não aceitam ou não querem “jogar” o jogo, são fortemente intimidados por este gigante:
“Em uma coorte de testes com drogas oncológicas, a indústria financiou 44% dos ensaios e 69% dos autores declararam conflitos de interesse”.
“Uma investigação relatou que o caixa (faturamento) das empresas que financiaram 23 ensaios clínicos oncológicos positivos aumentou em 14% após a divulgação dos resultados“.
“ …envolviam frequentemente relatórios seletivos de resultados e autoria de autores fantasmas. Outros casos envolvendo empresas que tentam intimidar autores de investigações independentes”.
Os pesquisadores do Cochrane estão atentos à pseudociência e estão elaborando diferentes mecanismos de combate. Um deles é o Cochrane Risk of Bias Tool para RCTs. Observem que apesar do financiamento dos estudos não ser uma variável computada, na prática, o simples fato do estudo ser financiado associa-se a um resultado positivo (revisão sistemática referida). Porém, de mecanismos, precisamos evoluir para pragmatismos.
“Uma questão fundamental é se os estudos com e sem conflitos financeiros de interesse alcançam resultados diferentes. Uma revisão sistemática de 75 estudos que demonstrou tais comparações, evidenciou que o financiamento da indústria foi associado com as conclusões de ensaios positivos e resultados estatisticamente significativos mais freqüentes“.
” Em alguns casos, estudos ou resultados da indústria podem não ser publicados se considerados comercialmente desfavoráveis“.
Dentro deste tema, Dr. Peter Gotzsche, atual presidente mundial da Cochrane, escreveu em seu livro “Medicamentos mortais e crime organizado”:
“Atualmente, temos uma cultura entre os médicos de que aceitar a generosidade e a ‘autoria’ de artigos falhos da indústria não é um impedimento para a carreira; de fato, parece impulsionar a carreira das pessoas, pois gera muito mais publicações e eles se transformam em palestrantes conhecidos. Precisamos reverter essa cultura para um ostracismo profissional, de modo que alguém assim não mostre mais sua cara em lugares onde seus colegas acadêmicos se reunirem. Artigos elaborados por autores fantasmas deveriam ser encarados como fraude científica, e os autores honorários deveriam ser tratados como estudantes que assinam seu nome em artigos comprados na Internet. Deveria haver multas substanciais por ocultação de autoria-fantasma, pois corrói a confiança que é tão fundamental na publicação médica. É necessário haver legislação para responsabilizar os médicos quando contribuem para o marketing ilegal com consequências prejudiciais aos pacientes ‒ seja sendo ‘autores’ de artigos
elaborados por autores-fantasma, seja por outras maneiras ‒ inclusive a possibilidade de ser desligado do conselho de medicina. Os médicos deveriam recusar recompensas da indústria farmacêutica e as sociedades de especialistas não deveriam oferecê-las”.
Dr. Peter Gotzsche continua:
“Não podemos confiar nem um pouco em ensaios realizados pela indústria, e a razão é simples. Não confiamos em uma pessoa que mente para nós com frequência, mesmo que essa pessoa possa dizer a verdade às vezes. A indústria traiu nossa confiança e tem um conflito de interesse enorme. Além disso, as empresas farmacêuticas escolhem investigadores que têm relações duradouras na indústria farmacêutica e que não fazem perguntas incômodas. Permitir que a indústria realize ensaios de seu próprio medicamento é como permitir que eu seja meu próprio juiz em um julgamento. (…) É muito estranho que aceitemos um sistema em que a indústria é tanto juiz como réu, pois uma das sólidas regras da administração pública é que ninguém jamais pode ter permissão para estar em posição na qual deva avaliar a si mesmo”.
E Dr. Peter Gotzsche finaliza:
“A indústria não deveria mais ter permissão de realizar ensaios clínicos, mas poderia fornecer fundos para ensaios liderados pela academia. Isso seria bem mais barato para a indústria. A Sociedade Europeia de Cardiologia estimou que os centros universitários podem executar ensaios com medicamentos a um custo entre um décimo e um vigésimo do custo dos ensaios industriais, em que há numerosos intermediários com fins lucrativos que cobram um pesado sobrepreço”.
Enfim, hoje em dia não basta entendermos de metodologia cientifica para adequadamente realizar um revisão crítica de uma publicação e assim obter “a prova” que tanto buscamos. Precisamos entender de hermenêutica, precisamos compreender os interesses ocultos, as reais intenções por detrás dos envolvidos, enfim, vivemos um paradigma atual onde a própria evidência, muitas vezes nasce incerta, onde a incerteza permeia o mundo as certezas.